Em defesa do Cristianismo

As apresentações de obras de José Herculano Pires em 2014, em homenagem ao seu centenário do nascimento, encerraram-se com um dos livros mais contundentes escritos por ele. Em “Revisão do Cristianismo”, Herculano aponta as mazelas pelas quais passaram o nome, a figura e os ensinos de Jesus e sugere os fundamentos da renovação da força e importância do Cristo. Publicado em 1977, o livro é uma crítica simultaneamente austera e exata ao Cristianismo chamado oficial, que, historicamente, transformou o jovem humano galileu em mito divinizado de Belém.(1)

O livro em comento é, segundo o autor, um livro de estudo e não de polêmica. É obra para se debater, pois proporciona verdadeiras reflexões acerca do homem Jesus (neste sentido, ser interexistencial, na linguagem de Herculano), dos atos, falas e ensinamentos do Cristo, da função do Cristianismo. Em momento algum, Herculano Pires pretendeu desferir acusações aleatórias e impiedosas ao estado de coisas derivado do que todos nós fizemos, ao longo do tempo, com a mensagem de Jesus; pelo contrário, suas críticas, ainda que proferidas em tom bastante severo, não implicam deselegância ou grosseria ao Cristianismo Oficial, mas nos chamam a todos à responsabilidade de revitalizar o ensino moral do Cristo com base nas novas descobertas das Ciências e das revelações atuais do mundo espiritual.

Já no prefácio, Herculano afirma que “há um abismo entre o Cristo e o Cristianismo”, explicitando, desde o início da obra, o pensamento que guiará as reflexões acerca do assunto. Segundo o autor, esse abismo mencionado decorre do pensamento mitológico aplicado à figura de Jesus. Este, menino judeu, nascido em Nazaré, filho de Maria e José, irmão de outras tantas crianças, cresceu integrando-se na cultura hebraica, e é evidenciado pelas pesquisas históricas que demonstram a existência do Rabi galileu. Viveu e morreu segundo as leis físicas, químicas e biológicas que regem todos os seres humanos nascidos vivos na Terra. Transcendeu, porém, a condição humana como nenhuma outra pessoa havia feito até então, deixando claro que a sua figura humana “é a essência indestrutível dos seus ensinos”.

Não obstante Jesus ter encarnado, por meio do processo por que todos nós passamos, a época em que esteve na Terra marcou “um momento de transição entre o mundo do Mito e o mundo da Razão. Os apóstolos e depois os primeiros conversos eram, todos eles, homens formados na cultura mitológica. Viam o mundo e os fatos do mundo, através das lentes mágicas do maravilhoso”. Em razão disso, a compreensão acerca do homem Jesus e, o que talvez seja mais grave, acerca da essência espiritual da mensagem cristã alterou-se profundamente, misturando aos fatos comuns da vida do Cristo a imaginação fantástica dos homens de então. “Da realidade humana de Jesus de Nazaré, surge o mito do Cristo, deste nasce a mitologia cristã e desta retomamos a busca do real, que uma vez colocado, nos parece frio e desprovido da riqueza emocional do mito.”

Centenas de anos se passaram desde o nascimento de Jesus em Nazaré. Sua vida, sua obra, seus atos e suas falas, ele mesmo, por influência de nossa forma ainda mitológica de pensar o mundo, sofreram danosas consequências. O cenário poderia ser desolador, contudo, Herculano Pires admite a possibilidade de se revisar o Cristianismo. De acordo com o autor, “se está salva a essência do ensino moral do Cristo, está salvo o Cristianismo. E se dele precisamos, pois que se mostrou capaz de transformar o mundo, é nosso dever imediato lutar para que ele seja recolocado no seu devido lugar, na sua posição exata, não como seita enriquecida e dominadora, mas como ideia dinâmica, força genética restaurada em seu poder legítimo, para ajudar-nos a reconstruir o mundo e a reabrir aos homens o caminho do Reino. A questão não é especificamente religiosa, é sobretudo cultural”.

Este é o ponto. A questão do Cristianismo não se encontra nas fronteiras das discussões religiosas, teológicas. Trata-se, principalmente, de revitalizar o sentido espiritual da vida de Jesus, “um homem, encarnação de um Espírito superior, que se encarnou num momento decisivo da evolução humana, a fim de dar a sua contribuição para o progresso da Terra”. É preciso entender que sua “divindade não estava e não está nos bálsamos com que o ungiram no mundo, antes e depois da morte. Estava e está na grandeza e na profundidade da sua visão do futuro, do seu conhecimento absoluto da natureza humana”. Segundo Herculano, “é hora de revisão, e revisão profunda, corajosa, para repormos o Cristianismo no seu justo lugar”. É hora de fundamentar a compreensão de Jesus e de sua vida nas novas e constantes revelações espíritas.

Herculano Pires, como é nítido em toda a sua obra literária, defende com convicto entusiasmo a mesma finalidade do Espiritismo que Allan Kardec sempre demonstrou em seus escritos e falas. “A Revelação Espírita não foi pessoal nem local e representa a continuidade da Revelação Cristã, no esclarecimento de todos os princípios cristãos e no restabelecimento do ensino real do Cristo. Sua finalidade não é a implantação de uma nova Religião, mas unificar o conhecimento, unindo a Ciência, a Filosofia e a Religião num sistema integrado. O Espiritismo é um auxiliar das Religiões, às quais oferece os recursos necessários para enfrentarem o Materialismo e se livrarem dos resíduos supersticiosos do passado. (...) A Filosofia Espírita é o corpo central da Doutrina e dela resulta a Moral Espírita, coincidente com a Moral Evangélica pura, liberta de tendências sectárias.”

As contribuições da Doutrina Espírita para a compreensão do Cristo e do Cristianismo como são, em espírito e verdade, chamam-nos a atenção para a necessidade de nos desfazermos do pensamento baseado na fantasia. “A ausência de resíduos mitológicos e mágicos, idolátricos e sincréticos, sob a orientação de uma doutrina racional e científica” permite que o Espiritismo seja o desenvolvimento mais adequado do ensino moral contido no Cristianismo. Uma vez estabelecidos e conhecidos os fundamentos da nova revelação espírita, faz-se necessário e possível empreendermos esforços em cumprirmos a moral espírita, que mais não é do que a própria moral de Jesus. Nos tempos atuais, “o mundo desperta para a necessidade de buscar a essência do movimento cristão”. É preciso, então, produzir os frutos adequados à árvore do Cristianismo em espírito e verdade, sem floreios mágicos, míticos e fantasiosos dos de cá e dos de lá.

Por fim, cabe uma autoanálise coletiva por todos nós espíritas. A história do Cristianismo, desde o nascimento de Jesus até a recente revitalização das ideias e dos valores defendidos pelo Cristo, nos mostra como “o apego dos homens ao maravilhoso e ao fantástico” influencia na perda da vitalidade original da moral cristã. Revisar o Cristianismo e revisitar a figura de Jesus é fundamental, sobretudo porque, como diz Herculano, “há muito mais grandeza espiritual e beleza humana nesse quadro simples, emocionante, do que em todo o aparato mitológico de uma encenação celeste”, pois que “um Espírito que, por sua evolução espiritual, supera a condição humana, diviniza-se”. Assim, o exato entendimento da importância de Jesus para a Doutrina Espírita deve passar pela razão e pelo bom senso, tentando superar nossa atávica tendência ao mágico e ao fantástico em relação a ele. E, também neste ponto, Herculano Pires demonstra sua prudência: “Claro que não se pode impedir, no meio popular, a remanescência de resíduos supersticiosos nas práticas espíritas”, mas “no julgamento honesto da questão, os condicionamentos provindos dos meios religiosos tradicionais não podem ser esquecidos, tanto mais que os espíritas conscientes dos princípios de sua doutrina são os primeiros a condená-los e denunciá-los, como influências estranhas e prejudiciais”.

(1) Todas as palavras e expressões apresentadas entre aspas foram retiradas da obra “Revisão do Cristianismo” de José Herculano Pires, 5ª edição da Editora Paideia, conforme constam exatamente no livro. Por esta razão, evitamos usar o termo “sic” todas as vezes que necessário.

Autor: Arísio Fonseca Junior

Fonte: forumespirita.net




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